A Última Procissão

Voltarei aqui. A este tema, e enquanto puder a este sítio de memórias retidas vagarosamente entre  o xisto e as frinchas de casas antigas, por onde a luz e o ar se escoam antes de alumiar os vestígios caídos num chão de abandono. A Arqueologia não é  só uma coisa  de ontem. A Arqueologias é também uma coisa de hoje! E suponho que a maioria dos arqueólogos estará redondamente enganada por reparar demasiadamente na forma do vaso de ontem, e esquecer por demasiado as mãos que lhe pegam nos dias de hoje. Sim, nas mãos que lhe pegam e nos olhos que nos riem quando nos contam e oferecem do vinho do tempo.

Recuperar este texto sobre Cilhades é apenas um alibi para um (re)começo. Uma forma de desfiar o novelo da história com o olhar sempre poisado nos gestos que tecem o ritmo rural deste efémero presente.

A Última Procissão*

Um calor intenso afogueia os rostos dos poucos “romeiros” que às 18 horas da tarde se juntam em redor da capelinha de S. Lourenço. Hoje é dia 19 de Agosto e em Cilhades comemora-se a festa do seu padroeiro.

São pouco mais de uma dezena os presentes. Àquela hora, e com aquele calor, não era de esperar outra coisa. “O santinho vem mais tarde de Felgar”, informa-me um dos presentes que empina um copo de cerveja fresquinha e depois limpa os beiços com a mão sapuda e calejada.

A organização da “festinha” ainda realiza os últimos preparativos. Instalam-se as derradeiras lâmpadas, esticam-se os cabos de som, monitoriza-se o gasóleo do gerador e descarrega-se de um carro com matricula francesa alguns tachos para a jantarada da noite.

Enquanto a azáfama corre vou passeando entre o espaço demarcado por pequenas casas de pedra. Hoje, dia de S. Lourenço, estão todas abertas, e a capelinha branca, que reluz como um pirilampo na pardez acastanhada do xisto, também. A casa mais bonita e conservada está completamente escancarada, de portas abertas de par em par, como que revelando um interior sem segredos a revelar. Não me contenho e espreito. De lá um sorriso rasgado a receber a minha curiosidade. “Quer entrar?”. Vacilo. Fico momentaneamente envergonhado,mas depois recupero a compostura. Não entro mas aproveito para gerar conversa. A senhora é simpática e difunde um ar de boa anfitriã.


Cilhades é isto. Memória, memória e mais memória. Agora ninguém aqui vive mas todos os que aqui têm casas, aqui vêm com intensa regularidade. “Nunca aqui vivi, e nem sequer os meus pais”, disse-me a senhora simpática. A aldeia foi abandonada nos finais do século XIX. Os homens e as mulheres que a habitavam preferiram ir para Felgar, mais próximo de Torre de Moncorvo. Mas mantiveram intacto o espírito do lugar, a julgar pela placidez com que a minha interlocutora desfiava recordações. A aldeia, embora sem habitantes, articulava-se diariamente com o amanho da terra. Rodeiam-na olivais imensos, muito viçosos e bem tratados. E um pouco mais abaixo o rio a correr luzidio. Esta paisagem vai desaparecer e S. Lourenço também – interpus, provocativo, a determinada altura. “Vai. É uma pena!...”, retorquiu-me a senhora com a naturalidade e a calma com que naquela tarde corria o rio Sabor. “ S. Lourenço vai para ali”, e apontou-me um cabeço que se desenvolve em frente à actual aldeia, na margem esquerda. “Mas não vai ser a mesma coisa!”, sorriu quase de esguelha. Depois de uma pausa continuou “...é uma pena...veja-me estes olivais, dão azeite do mais fino. Mas que lhe havemos de fazer?!.. Vai ficar tudo debaixo de água. O santo não, que vive na igreja de Felgar! Também dizem que vão construir uma capelinha nova para ele...não sei. Ouvi dizer...”.

Agora chegam mais romeiros. Também já passa, e muito, das sete horas da tarde. O gerador de electricidade continua a roncar. É ele que mantém as cervejas e as bebidas frescas e que logo à noite há-de alimentar o bailarico que este ano tem uma sessão de Karaoke. Neste momento é o único ruído na acalmia do vale.

O sol começa a derrear-se na serra e a entrar tombado pela objectiva da minha R1. Um pequeno autocarro, que transporta um grupo de músicos da banda filarmónica de Felgar desce um estreito carreiro asfaltado; reluzem os seus vidros na encosta, enquanto o sol se põe. “Já lá vêm”, disse-me a minha anfitriã. E eu lá fui, de máquina em riste, para capturar a última procissão.

Tudo se inicia na ponte, junto à berma do rio. Adorna-se aí o andor e em cima deste “monta-se” o santo. Os músicos afinam os metais. O rio parado. S. Lourenço olha, observa. Eu diria que a solenidade de todo o acto advém desta imagem complacente e de um olhar esbugalhadamente meigo que se escapa de um rosto bonacheirão coberto com chapéu tricórnio. Há sorrisos, há "bocas", há gargalhadas e muitos admiradores este ano a tirar fotografias. Alguns revelam uns copitos a mais.

De Felgar continuam a descer carros, a maioria com matricula estrangeira. Ao todo serão mais de uma centena de pessoas. O trompete está desafinado. Os músicos esforçam-se para não desapontarem os presentes. Se estivessem mais concentrados talvez não houvesse tanta desafinação. Mas valem pela entrega. Na ti-shart de um dos músicos podia ler-se“cem por cento Felgar”. E todos aplaudiam esta tirada.

O andor já está pronto. A banda está preparada. A procissão arranca. Vai sem padre e segue sempre pela beirinha do rio, passa a antiga casa do barqueiro, hoje em ruínas, e dirige-se por um canavial em túnel. Depois irrompe entre as oliveiras. O andor vai rápido, os músicos com passo acelerado. A toada acertou. Param nos sítios da tradição centenária, depois arrancam novamente quase a correr entre um caminho de pó.

Já na aldeia a festa atinge o auge. A procissão contorna a capela e depois S. Lourenço é colocado com respeito no seu interior. Alguns depositam algumas esmolas. Não é muito, cinco euros, porque o tempo é de crise.

Os músicos da banda dão uma roada para mostrarem o que verdadeiramente valem. Param, tocam e a harmonia dos metais e das caixas alastra-se pelo vale. S. Lourenço lá está, agora dentro da sua “casinha” por alguns instantes e eu quase juraria que com um olhar mais murcho. Mas talvez seja por já estar escuro. O interior da capelinha já está na penumbra.

Hoje foi dia de S. Lourenço. Talvez o último dia recordado em Cilhades antes das águas da barragem começarem a subir. Daqui a meses lá virá a transladação e a construção de um outro sítio para o "santinho" ver o seu rio de sempre, mas muito mais caudaloso. Os tempos mudam, diria Bob Dylan se soubesse deste caso.

De Cilhades ficar-nos-á a recordação. A História de uma aldeia que resistiu ao abandono de todos os homens de cá, mas que foi incapaz de resistir à decisão de um pequeno grupo de fora.

“Que S. Lourenço guarde Cilhades debaixo de água”, atirou-me a minha interlocutora de há duas horas atrás quando já me preparava para regressar. “E que a nós também nos proteja para alimentar a memória desta materialidade que vai fazer parte da nossa arqueologia sentimental...”, respondi-lhe eu laconicamente, já sem convição e apenas a tentar imitar o seu ar de disposta simpatia.

*Texto escrito em agosto de 2009
A Última Procissão Reviewed by António Luis Pereira on 10:15 da manhã Rating: 5

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